sexta-feira, 4 de maio de 2012

O corpo e a loucura: visões de Nise da Silveira e Bezerra de Menezes.


Há muito mais dentro de nós do que podemos perceber ou conhecer.

A palavra inconsciente costuma ser usada para falar de um conjunto de processos mentais que não são conscientemente pensados. A psicanálise entende que se trata de um reservatório para memórias reprimidas de eventos traumáticos que influenciam os pensamentos e o comportamento conscientes. 
Dentro de uma concepção espírita, segundo a qual a encarnação nos proporciona o esquecimento das vidas anteriores, a ideia de inconsciente se amplia para abranger memórias, traumas e vivências não apenas do presente, mas de um passado que pode ser milenar.
De fato, este esquecimento do passado já era considerado, à época de Kardec, um dos principais argumentos contrários à tese da reencarnação. Seria como um estar sempre em permanente recomeço.
Os espíritos contudo explicam que este passado não está totalmente esquecido. "Não temos, é certo, durante a vida corpórea, lembrança exata do que fomos e do que fizemos em anteriores existências; mas temos de tudo isso a intuição, sendo as nossas tendências instintivas uma reminiscência do passado” (LE, item 393). Vemos aqui, de certo modo, a ideia de algo dentro de nós que não podemos conhecer diretamente, mas que influencia nossas ações.
Algumas vezes, esta influência se manifesta na forma de patologias. A médica brasileira Nise da Silveira entendia que as expressões do inconsciente eram um importante caminho na terapia dos doentes mentais.

Nise, nome de musa

Seu nome foi escolhido em homenagem à musa do poeta inconfidente Cláudio Manoel da Costa.
Nascida com temperamento forte, crescida em Alagoas em meio a uma família com acentuada militância política, Nise Magalhães da Silveira (1905-1999) foi cercada de arte e cultura desce cedo. Ali "surgiu uma menina brasileira que faria história singular. Criança-prodígio, adolescente de fina sensibilidade, jovem que prenunciava emancipação feminina. Uma figura que, por atos e fatos, se tornou ícone e alicerce de gerações. Personalidade única e inesquecível." São palavras de sua biografia Nise, arqueóloga dos mares, de Bernardo Carneiro Horta.

Nise da Silveira

A menina, que se descreveria mais tarde como "selvagem" e "guerreira", cresceu e formou-se em medicina em 1926 na Faculdade de Medicina da Bahia - a única mulher da turma -, especializando-se em psiquiatria. Casou-se com Mário, seu colega de faculdade e, em 1927, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar em 1933.
Por possuir livros marxistas, foi denunciada durante a Intentona Comunista e acabou no presídio da Frei Caneca por 18 meses, onde foi companheira de cela de Olga Benário, a moça judia entregue à Gestapo nazista pelo governo brasileiro, vivida no cinema pela atriz Camila Morgado, em Olga (2004).
Ali também se encontrava o escritor Graciliano Ramos, razão pela qual ela se tornou uma das personagens do livro Memórias do Cárcere.

O primeiro volume da primeira edição
de Memórias do Cárcere, lançado em  1953.

Depois da prisão, viveria com o marido em semiclandestinidade até 1944, quando foi reintegrada ao serviço público e assumiu o setor de terapia ocupacional do Hospital Pedro II, no Engelho de Dentro. Seu trabalho ali daria origem ao testemunho mais eloquente do suas convicções acerca da terapia.
A doutora discordava dos tratamentos usados comumente - lobotomia, eletrochoques, confinamento em hospitais e defendia a humanização do tratamento de pacientes psiquiátricos, onde as atividades como pintura e modelagem assumiram um importante papel como meios de expressão dos conteúdos inconscientes.

Aluna de Jung, propõe e pratica ideias revolucionárias em favor da humanização do tratamento dos doentes mentais

Segundo Mário Palmieri, "os doentes mentais eram mais estudados por neurologistas do que psiquiatras, eram praticamente excluídos da Medicina! Jung foi um dos que começaram a dar atenção maior ao estudo de fenômenos que aconteciam com pacientes mentais” .

Nise da Silveira (à esquerda) em encontro com Carl Gustava Jung.

Nise foi aluna de Carl Jung, o criador da Psicologia Analítica. Mas seu modo de pensar antecedeu este encontro. Nise declararia em entrevista ao professor Luís Gonzaga Pereira Leal que as mudanças em seu modo de encarar e lidar com a terapia "ocorreram muito antes de eu ter um contato maior com a psicologia junguiana, com antipsiquiatria. Pretendia que o paciente na Terapia Ocupacional tomasse conhecimento com a matéria. E, outra vez, um paciente me mostrou que eu estava no caminho certo, quando certa vez me ofereceu um coração em madeira e no centro do coração um livro aberto. Quando me ofereceu isso, me disse: 'um livro é muito importante, a ciência é muito importante, mas se se desprender do coração não vale nada'. Tudo que eu sei de psiquiatria aprendi com eles."

Pintura de Adelina Gomes, faz parte do acervo do Museu de Imagens do Inconsciente

Deixou-nos exemplos pessoais, atuação profissional, inconformismo mas, talvez, seu legado mais conhecido seja a criação do Museu de Imagens do Inconsciente. O museu teve sua origens nos ateliês do Hospital Pedro II, cuja produção era rica e abundante, além de apresentar grande interesse científico. Pareceu uma boa ideia disponibilizar o acervo de trabalhos aos cientistas, permitindo tanto o estudo dos símbolos quanto o acompanhamento da evolução dos casos clínicos mediante a análise da produção artística espontânea dos pacientes e a percepção do dinamismo da psique.
O Museu reúne mais de 350 mil obras e fica na cidade do Rio de Janeiro, no bairro do Engenho de Dentro. 
Acesse aqui o site do Museu.

A loucura sob novo prisma

O doutor Bezerra de Menezes, como médico espírita, pesquisou o tema da loucura e nos deixou um livro sobre o assunto, intitulado A loucura sob novo prisma. Suas ideias divergiam dos conceitos correntes entre médicos da época.
Segundo ele, o pensamento é atributo da alma e suas perturbações não decorrem obrigatoriamente de lesões neurológicas. Ele propôs que poderia haver quadros de loucura provocados pela obsessão (influência persistente de espíritos desencarnados). Afirma o bom doutor: "pelos meios espíritas, que nos dão a 
ciência da loucura por obsessão, é que podemos fazer, com segurança, o diagnóstico diferencial desta espécie, ainda desconhecida da medicina, que a confunde com a loucura por lesão cerebral. E, uma vez feito aquele diagnóstico, cumpre aplicar-se à obsessão um tratamento especial, como é de lógica rigorosa."
Afirma ainda ele que se deve compreender a loucura como Um fenômeno mórbido de duplo caráter: material e imaterial.
Se os são pressupostos diferentes daqueles da medicina praticada à época, assim também deve ser o tratamento. Bezerra propõe tratamento "moral e terapêutico". "No princípio, enquanto os fluidos maléficos do obsessor não têm produzido lesão cerebral, deve-se procurar elevar os sentimentos do obsidiado, incutindo-lhe na alma a paciência, a resignação e o perdão para seu  perseguidor, e o desejo humilde de obtê-lo, se em outra existência foi ele o ofensor".
A abordagem espírita, mais uma vez, mostrou-se adiante do seu tempo. Enquanto os médicos ainda acreditavam na loucura como resultado de origem orgânica, encontramos aqui a origem espiritual do problema e a proposta terapêutica condizente, iluminada por princípios de paciência, amor e perdão.
Não podemos deixar de pensar no importante valor da arte na sensibilização das criaturas, e na possibilidade da expressão artística como elaboração de conteúdos inconscientes que contribui para a cura. Assim, vemos como as propostas de Nise da Silveira e de Bezerra de Menezes podem coexistir e, mesmo, complementarem-se.

Leia mais:

Bezerra de Menezes. A loucura sob novo prinsma. São Paulo: FEESP, 
Nise da Silveira. Psicol. cienc. prof.,  Brasília,  v. 14,  n. 1-3,   1994 .
Museus mostram a vitória da arte sobre a lobotomiaGabeira.com. 

Não deixe de ler:
Bezerra de Menezes, fatos e documentos, de Luciano Klein Filho, por Instituto Lachâtre.


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